Salvem o N’gola Ritmos
25/10/2002

“É urgente que se escreva e estruture o género musical Semba, para que possa ser conhecido mundialmente, ao invés de ser inventado por cada um à sua maneira”. Adverte Amadeu Amorim


Amadeu Amorim é um dos músicos do N’gola Ritmos, conjunto musical que esteve na base da independência de Angola e de um género adoptado por muitos músicos angolanos: O semba. Amorim apela à salvação do património deixado pelo conjunto. “Faz parte da história de Angola e da música angolana. É necessário e urgente que se estruture e escreva o género semba, para que possa ser reconhecido ao invés de ser inventado por cada um cantor à sua maneira.

Como se dá a sua entrada para o N’gola Ritmos?

Eu tocava em casa na brincadeira e o Carlitos Vieira Lopes, incentivou-me para que me apresentasse no N’gola Ritmos. Fez-se um espectáculo que o N’gola Ritmos ia abrilhantar a actuação do GESTO, o primeiro grupo de teatro que apareceu em força, com qualidade, tinha entre os principais interpretes, o Gabriel Leitão, o Antonino Van-Dúnen, o Riqueza, o Lala e outros. Precisaram de duas pessoas que pudessem tocar bumbo, ou a chamada N’goma. Apareci eu e o Rui Mingas, acabei por ficar.

Quando apareceu o conjunto e com quem?

Nos anos 40, quando começaram a soprar os ventos independentistas, a vontade de muitos jovens era afirmarem-se como angolanos, os colonialistas impunham a sua cultura em detrimento da nossa. Parecia mal falar kimbundu, quem o falasse era considerado atrasado, gentio, qualquer pessoa de 40 anos das zonas urbanas não sabe kimbundu, viveu a pressão das mães que diziam: Menino parece mal, tu já és uma pessoa civilizada etc. Os fundadores do N’gola Ritmos pensaram exactamente que era preciso fazer algo para manter a nossa identidade. O espaço à volta não permitia manifestações culturais da terra, daí fazer-se um conjunto musical. Nos anos 40 com o Liceu Vieiras Dias, o Nino Ndongo, eram os principais, tocava-se em casa deste ou daquele. Só em 1950 o conjunto cresceu. Liceu era o mais velho, tinha uma sensibilidade musical e uma cultura mais avançadas, estruturou e guindou o conjunto. Eu, Antonino Van-Dúnen que saiu porque foi transferido, era funcionário dos correios, entrou o Zé Maria dos Santos, o Euclides Fontes Pereira. Com estas pessoas deu-se o grande salto qualitativo ao N’gola Ritmos na década de 50.

O que era o N’gola Ritmos no contexto social e político?

No fundo, era uma rebelião pacífica, tentando despertar consciências adormecidas, que não acreditavam em mais nada, eram 500 anos de colonização. Não havia televisão, nem rádio para toda gente, os jornais não chegavam aos musseques nem ao interior do país e nós sabíamos que uma canção ficava presa no assobio, no cantar. Na LNA quando cantávamos em kimbundu, as pessoas viravam a cara meias envergonhadas, chamavam-nos os mussequeiros. Algumas pessoas no meio daquela malta que estavam acordadas, entediam porque cantávamos em kimbundu, mais tarde outros apareceram a dizer que falavam ou cantavam em kimbundu. Chegamos a rádio Esperança, uma rádio que transmitia de Brazaville, ouvida às escondidas. A nossa canção era a única que existia, as pessoas ouviam a rádio e o N’gola Ritmos, passando a mensagem de que não chegamos ao fim, vamos começar agora

As letras dessas músicas transmitiam mensagens de luta?

Tínhamos que saber fugir à polícia e dos seus informadores, os chamados bufos, uma história longa para se contar numa entrevista, mas acabamos por fazer canções de absoluta reivindicação, e incendiávamos aquelas pessoas fartas de ser espezinhadas, e eles entendiam que havia qualquer coisa na fogueira. Isso acabou por se descobrir, fomos perseguidos. O conjunto morre antes do tempo, aqueles que eram funcionários foram transferidos. Entra este, sai aquele, entra outro etc. Tudo culmina com a prisão porque alguns de nós estávamos directamente metidos na luta política, como eu e o Liceu, nenhum de nós sabia o quanto o outro estava metido, na altura nem com a mulher se podia falar. Foi esta fase que resultou na criação do MIA (Movimento Independentista de Angola).

O N’gola Ritmos é o percursor do género semba? Havia de entre outros os ritmos, cidrália, lisanda, caixa corneta, cabetula, o cabocomeu, o semba surge na transição da música popular para a cidade. Quanto à mim, é a aglomeração de vários ritmos. É um balanço terrivelmente forte, que vai ganhar o seu espaço, mas precisamos de o situar, de o escrever, dizer semba é isso. Exactamente como o swing, o fado, o samba. Noto muitas diferenças entre os seus vários executantes. Os kiezos tocavam à sua maneira, o N’gola Ritmos, o Bonga, o Paulo flores, a Banda Maravilha, Os Jovens do Prenda, enfim, todos tocam diferente. É importante estrutura-lo, escreve-lo, para que daqui a 50 anos quem quiser possa tocar semba e não inventa-lo do seu jeito. Como palavra, é um compasso de dança, vem do kimbundu, da massemba, uma dança de roda, que depois também se chamou rebita. Semba é um compasso novo.

Onde se apresentavam com mais frequência?

Nos bairros, almoços e jantares, aniversário deste e daquele, os outros espaços, eram do colono. Faço um aparte para frisar que havia muitos colonos, ou brancos que lutaram connosco e foram, para a cadeia connosco, tanto que uns eram considerados brancos de primeira, tinham nascido na Metrópole e outros de segunda, nascidos em Angola. Essa diferença é preciso que as populações e o futuro saiba, a base era a independência de Angola. Cantávamos principalmente no bairro Operário que juntou a cidade e os musseques, em nome da urbanização, da civilização, eles foram sendo empurrados e encalharam no bairro operário. Foi essa mescla que abriu caminho para o desejo de independência, e o N’gola Ritmos também nasce aí, o primeiro lançamento de panfletos incitando à luta pela independência foi no bairro operário. A princípio não chegávamos a grande cidade. Depois chamamos alguns artistas como Sara Chaves, a Fernanda Ferreirinha. Fizeram sucesso, ganharam prémios. Outros passaram a gostar de se apresentar em palco com o N’gola Ritmos, trazíamos um sabor tropical, uma mistura diferente que começou a ser aceite. Em palco cantávamos uma canção da terra, erámos vaiados, logo a seguir cantávamos uma canção portuguesa estilizada, pegávamos num fado e davamos-lhe um sabor tropical, angolano e ficava diferente. Os nascidos em Angola, ou portugueses que se sentiam angolanos pela vivência, aplaudiam. Era preciso depois chegar às gravações para passar às províncias, e essa luta também ganhamos, fizemos as primeiras gravações em fita, nas emissoras. As nossas canções estão nessas fitas, ficaram por aí, muitas devem-se ter perdido.

Como é que a vossa canção se expandiu?

A base do N’gola Ritmos é a canção popular. Pegávamos numa canção introduziamos-lhe mais algum conteúdo e expressão musical, dando-lhe um contexto mais seguro para transmitir uma ideia. Mas há canções próprias do conjunto. Há elementos que gravaram o N’gola Ritmos dizendo que é música popular. Não concordo, são músicas que apanhamos em bruto, demos-lhes uma volta e colocamos o nosso carimbo. E ainda hoje, no Brasil canta-se o N’gola Ritmos como sendo música popular. Apareceu inclusive nossa música numa novela e muitos a tocam dizendo que é canção popular.

Essa músicas foram gravadas com autorização vossa?

Não. Inclusive houve uma senhora francesa que gravou um disco denominado África qualquer coisa que tem uma foto nossa na capa. Foi a Angola como jornalista, pediu ao Jomo Fortunato na sua qualidade de investigador para nos entrevistar, eu acedi, cantei várias canções, eu e o Zé Maria para mexer dar conteúdo á entrevista. E ela foi buscar várias outras canções nossas a rádio nacional gravou, fez um CD e nós ainda não vimos um tostão.

Não podem processar esse tipo de procedimentos?

A verdade é que em Angola ainda não existem os direitos do autor. Ainda recentemente a cantora brasileira Joana pediu para gravar uma canção nossa, não dissemos nem que sim nem que não e qualquer dia talvez apareça a cantar as nossas canções.

Quantos discos gravaram e como se dissolveu o agrupamento?

Eu e o Liceu fomos para prisão em 1959, o conjunto manteve-se com a força do Nino N’dongo que foi a Lisboa fazer um espectáculo e gravou dois discos, são os dois discos que existem, o resto são bobines. Depois da prisão de Liceu, da minha que era o bateria e cantor, o Zé Maria que era viola solo e ritmo, o Euclides foi transferido de Luanda para o Luso, ficou o Nino, depois entrou o Zé Cordeiro, o Gege, o Xodô, mantiveram o conjunto de pé, mas nunca mais foi aquela força homogénea, aquela batida segura perdeu-se um bocado, e quando ao voltar já estávamos descompassados. Eu e o Liceu depois da cadeia tínhamos que nos apresentar de 15 em 15 dias à polícia e estávamos proibidos disso e daquilo, veio a guerra estivemos muitos anos com o recolher obrigatório não se podia andar a noite, depois vieram as doenças, é preciso ver que o elemento mais novo do N’gola Ritmos tem 65 anos.

Lurdes Van-Dúnen e Belita Palma também cantaram no N’gola Ritmos. Cantaram. E já que falamos na autoria das canções que a Belita, gostava de frisar que é necessário e urgente em Angola dar valor ao compositor, ele não tem expressão na nossa vivência musical. O artista muitas vezes é obrigado a compor mesmo sem ter queda para isso. Nos palcos ninguém se lembra de dizer que esta canção é de autoria de fulano, ninguém enaltece o compositor. É preciso que se dê respeito ao compositor para que a nossa música tenha maior espaço e vivacidade.

O que pensa da política do governo angolano em relação a cultura?

Agora temos a obrigação de exigir que o governo faça da cultura um sector com expressão no país. Já houve um ministro da cultura, e outros dirigentes incluindo o governador de Luanda Dr. Aníbal Rocha que se comprometeram a subsidiar a gravação de um disco, que talvez não seja vendável, mas que fique para a história. Está-se a perder a história da nossa música, é urgente que se faça uma recolha, e que amanhã os nossos netos ou bisnetos tenham orgulho da nossa canção, tenham noção de como ela começa e que escadas subiu, como o Brasil tem “100 anos de Samba”, por exemplo. Sobre a rebita já ninguém sabe metade do que foi, ninguém conhece um Fançoni, o que foi ou a massemba, ou o que é um caduque. E há as influências dos ritmos das fronteiras do nosso país, que têm muito mais anos de vivência musical que nós. Francó influenciou terrivelmente os primeiros tocadores de viola em Angola. É preciso valorizar todas as expressões musicais do país, e preservar as origens. Nenhuma canção é estática, todo mundo sofre influências, mas quer esteja na Cochinchina, eu tenho que ser capaz de dizer: Espera aí essa canção é Angola. Cabo Verde tem sido um exemplo nisso. É isso que alguém como eu, que passou por muitas influências e vicissitudes, não quer que se perca, uma canção que é a base de um povo. Um país também se faz da sua cultura, é ela que vai preservar uma identidade e um povo.

Sílvia Milonga


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